quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Paisagem e culturas


Pois como dizemos paisagem em chinês?
Nao, como dizem, sem mais se interrogar sobre a sua escolha, as línguas europeias a partir de uma experiência perceptiva e definito’ria, como esta parte de pais que a natureza apresenta ao olho que a vê e que se estende ate onde a vista pode alcançar…, tal como se deixar abraçar por quem contempla,  e que, na extensão , a visão recorta.
O ponto de vista exprimido na língua chinesa  e’ aquela nao mais de uma indentificacao.., mas da interacao entre polos: os do alto e do baixo, do vertical e do horizontal, do compacto e do fluido, ou ainda do opaco e do transparente, do móvel e do imóvel.
Assim bem longe de se deixar conceber como um fracao ou porção de um pais submetida a autoridade do olhar e delimitada por um horizonte, a “paisagem” chinesa opera a globalidade funcional dos elementos, ou antes de fatores, de vetores, em interacao. O pintor chinês nao pinta um canto do mundo a partir da posição de um sujeito perceptivo e tal como o construiria em perspectiva; mas e’ a totalidade do dinamismo e sopro cósmicos, tais como se desdobram no grande processo do mundo, através do jogo infinitamente diverso de suas polaridades, que e’ encarregado de veicular o ela` vital do pincel.
Francois Jullien, in
O dia’logo entre as culturas
Do universal ao multiculturalismo.






terça-feira, 8 de novembro de 2011

Angustia territorial


A associação da  ausência de uma localização fixa com uma crise de presença, - uma consciência que nenhuma sociedade tem assegurado de uma vez para sempre seu direito a existência-, nos faz sentir estar vivendo em uma constante ameaça, diante do perigo imediato de dissolução. 
Este vazio potencial induz uma trama na existência social, na qual a permanência humana não esta’ mais garantida, ou segura, mas continuamente exposta ao riscos de não se manter, como hoje, como o desejado, ficando exposta e frágil como uma preterida ruína do instável futuro.
Organizada para a sobrevivência,  para a participação na ordem do ser, toda sociedade tem que lidar com os problemas de sua existência pragmática, e "ao  mesmo tempo estar preocupada com a verdade de sua ordem" .

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Um movimento sem fins, com meios.


Acompanhar, a uma certa  ou prudente distancia, as ações e deslocamentos dos atores locais, em seus diversos níveis de influencia, poder e manifestação, sejam eles públicos ou privados, me alivia o envolvimento da decisão cotidiana e me permite apontar, ou ao menos tentar, a critica dos seus procedimentos e intenções.
Uma posição na mesa de reunião, um movimento do corpo, das mãos, a flexão velada da fala, o gesto de reconhecimento ou cumprimento ou a distinta recusa me expõem, como o tom da gravata, os reais, serão eles reais?, interesses que o discurso escamoteia ou emite em limitada parte ou diapasão.
Alguém anota com estudado cuidado uma data na agenda, um outro um rabisco sem sentido no papel em branco, e um documento, um mapa que circula a mesa e desperta preocupação, traz uma surda provocação, uma resposta evasiva, e assim a reunião, em seus altos e baixos, chega ao fim, oponentes e aliados, uma decisão em aberto a negociação futura, alguns recados deixados no ar, ameaças e desafios.
Qual a ordem oculta deste malabarismo?
Lucro, poder, ideologia?
Quem representa quem, a que serve esta pantomima sem palco, que pode decidir futuros alternativos para o capital e para o trabalho, produzir uma nova situação e reposicionar poderes e lucros?
De um lado, o poder político, feito da árdua disputa eleitoral, dos compromissos públicos, são temporários ocupantes.
Do outro lado, ou do mesmo lado da mesa, o capital se move sorrateiro, nas brechas, nos desvios, buscando o caminho mais rápido para manter e ampliar os seus lucros, armada a lógica obtusa por entre os dentes afiados do caçador.                                                                                                    
Onde se enfia, avestruz, o observador?
Desaparecida em nuvens a arquibancada, a cadeira, o suor, o entusiasmo da boa batalha,
Da boa vida,
Da boa.

Confirmado em maio 2015





quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Desejos

Desconheço os retos caminhos
dos outros desejos,
improviso os meus,
livres movimentos pelos ares.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

registros e marcas


as ruínas ocupam os vazios e suas fachadas esgarçadas contra o céu esvaziam o sentido das estreitas ruas da capital, 
como as janelas, deixando passar 
a escuridão dos interiores desocupados, 
deixando escapar
os riscos deixados nas paredes, 
as tintas descoradas pelas chuvas e pelo sol,
as estatuas sem nome, em bronze e mármore. 
quem quer guardar sem limite as memórias de outros, 
guarda sem fins e objetivos 
a tradição emprestada, dos vitoriosos, dos vencedores, dos donos do papel e dos lugares,
sem fazer o futuro.



segunda-feira, 20 de junho de 2011

Estranhos e únicos momentos

Estranhos e únicos momentos, estes os primeiros a serem aproveitados, imprevisíveis, nas suas chegadas, quanto aos seus tempos de graça, de dons e retornos e que aguardam outras excepcionais oportunidades que poderão vir. E que Virão.
Nas festas, revoluções, nas comemorações e nos carnavais, quando o corpo suspende as repressões e se movimenta, renega, em liberdade, as convenções, e junto com o espírito se deixa tomar pelo êxtase, pela epifania, pelo jubilo, pelo prazer, nestes momentos excepcionais, as coisas do mundo adquirem novos sentidos, abrem-se para novas e mais profundas percepções, e a arquitetura e a cidade se transfiguram e brilham os seus escondidos encantamentos. 
A pedras, paredes e portais se acendem, iluminam largos telhados e longos quintais  que se estendem em cálidas sombras pelas estreitas e obliquas ruas coloniais.

sábado, 21 de maio de 2011

Governanca das metropoles

Muito interessante esta coletanea, organizada por Jeroen Klink, apresentando conceitos , experiencias e perspectivas de questoes de gestao e planejamento em regioes metropolitanas, no Brasil e com analise de realidades  de outros paises ( Canada, Arica do Sul e China).
Vale a pena ler para quem se interessa compreender e propor novos modelos de gestao democratica e competente da regiao metropolitana de Vito'ria.
Editora AnnaBlume

sábado, 7 de maio de 2011

domingo, 10 de abril de 2011

Transparente e leve


A brisa e o vento, transparentes e leves, revelam o embate de dois sentimentos, do que se mantém estático e do que se realiza, na oposição da gravidade e da graça.
A gravidade, através do peso e da massa, qualidades fundantes da matéria, tanto natural como construída, suporta e fixa as coisas permanentes da cidade e do mundo.
A graça, em sua leveza, é a experiência dos mistérios, da fragilidade das mudanças, do acesso a seus encantos e fantasmas, quando, diz Lampedusa, “ Sob o fermento de um sol intenso, todas as coisas pareciam perder o peso”.
Observar as formas e matérias urbanas, sob este duplo olhar de admiração, nos faz compreender a sua dureza e a sua fluidez, a sua continuidade e as suas mudanças, a sua identidade e suas diferenças, oposição  do ser e das suas interpretações, pois, diz Marilena Chauí “o que causa admiração e melancolia é a perpétua instabilidade das coisas, sua aparição e desaparição, o nascimento e a morte, a geração e a corrupção dos seres”.
No mundo sensível, dos elementos  que sustentam a continuidade na unidade do ser, são as mudanças que alimentam a curiosidade dos que querem entender o nascimento e morte dos homens e de suas criações, que querem viver as transformações  do artificio e da natureza, que querem descrever as paixões e os conflitos que atingem a sociedade e movimentam os acontecimentos históricos.
Que novidades, hoje, trazem e circulam estes ventos e brisas, instantâneos e etéreos?
Novas pestes globais que não obedecem a fronteiras, saltam os limites de países e avançam sobre cada corpo desprotegido, inoculando a solidão, o sofrimento e a melancolia?
Ou serão eles como brisas saudáveis que, originárias de outros mares, trazem as notícias recentes do coração do mundo, carregando as novas e expondo ao uso humano, expandidas e potenciais interações sensíveis?
Eugene Montale nos anuncia um vento tão especial que soa como lâminas, em sua poesia Corne Inglês.
O vento que esta tarde faz soar diligente
__ lembra um ruidoso sacudir de lâminas__
os instrumentos das arvores copadas e varre o
o horizonte de cobre
onde rajadas de luz alongam
como pandorgas no céu que ribomba ...
e o mar que escama por escama,
lívido, se matiza,
lança à terra uma tromba
de espiraladas espumas;
o vento que nasce e morre
na hora que lenta escurece
pudesse ele esta tarde fazer-te soar também
desafinado instrumento,
coração.
Será possível conviver, peso e leveza, corpo e espírito, comungando neste artifício monstruoso e belo, nestas cidades dos homens e deuses, que não mais cabem em suas muralhas ?
Ambigüidades ocupam estes ventos virtuais.
Ao se deslocarem, instantaneamente, não pressionam os corpos e a atmosfera, deslizando por fibras óticas, por ondas, em oscilações tão finas e complexas que só a máquina matemática consegue decifrar as suas intenções. Os muros e paredes não são obstáculos, não alteram as suas direções ou interferem nos seus caminhos e pouco podemos perceber as distorcoes que produzem e as portas que batem e se deslocam.
Mas também são como sopros homogêneos, repetindo a exaustão, sobre os corpos desprotegidos, a mesma e idêntica ordem, desqualificando o sensível e o tátil subsitutuidos pela interface sem profundidade, igualando vontades e apetites que se encerram no imediato instante de suas satisfações.
Poderão conviver e somar, pedras e bits, conectados em pontos de telas, ou se oporão, matéria e virtual, em mundos estanques e estrangeiros, com seus próprios desígnios e valores, tentando impor modelos únicos de vida e indiferença?
Em ambos os circuitos, às permanências acumuladas tentam se opor ao esquecimento e a perda.
È insuportável manter cada e todo registro das coisas, acumulando-se em camadas sobre as fachadas e pisos, grudando-se a cada instante o novo e outro e mais, se imprimindo sem fim nos muros e pedras engrossadas de tanta informação.
Bom são as coisas que viram pó. Levadas pelo tempo e pelas intempéries desgrudam-se de seus suportes e volteiam pelos ares, não se agrupando em novas ordens e formas, mas deixando-se levar desgarradas até que nem o brilho do sol consiga mais captar as suas desaparições no final da tarde, quando as sombras ombreiam as luzes contra as montanhas e os sobrados da velha cidade.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Vitória Metrópole 1. Avaliação


Somente nesta ultima década, uma parte dos municípios brasileiros começou a assumir o papel, a importância  e capacidade legal e operacional que  lhe foram dados pela constituição de1988, que os constituiu como um ente federado e autônomo.
Mesmo subordinados a uma estrutura legal que lhe impôs muitas competências sem lhes fornecer a justa  distribuição fiscal por estas atribuições, principalmente na atenção a saúde básica e a educação fundamental e na gestão, controle e produção do território urbano, cujas necessidades de investimento e manutenção tiveram uma grande expansão, um grande esforço político e técnico tem movimentado prefeitos e cidades para suprir estas demandas crescentes de investimentos e custeios dos serviços públicos  continuados.
Passaram também, nesta década, os municípios a buscar um papel mais relevante na intervenção na economia, através da elaboração de planos estratégicos, onde além de benefícios fiscais e para fiscais, foram criados mecanismos de atração e estímulo a novas atividades, principalmente de pequenos e médios portes,  priorizadas a produção de infra-estruturas produtivas e educacionais e a consolidação das vocações e potencialidades locais e regionais de um desenvolvimento sustentável.
No Espírito Santo, como em outros estados federados semelhantes, a redução da população das pequenas cidades e a expansão, mesmo que mais moderada das médias e cidades metropolitanas, a complexificacao das atividades econômicas e o surgimento de uma nova classe media ascendente, mais exigentes do consumo dos bens e serviços públicos, de educação( necessária para o acesso ao novo e exigente mercado de trabalho, saúde ( básica e atendimento a terceira idade), do saneamento básico ( drenagem, coleta de lixo e esgoto), de espaços públicos de cultura, esportes, lazer e convivências locais acrescidos pela exponencial necessidade de mobilidade de bens, pessoas e informação exigem uma nova postura política na gestão compartilhada destes serviços e do ambiente natural e construído.
O caso da Grande Vitoria e’ exemplar. Constituída de quatro principais cidades de população semelhantes e receitas dispares, onde o crescimento da economia ainda e’ subordinado a poucas e grandes empresas, vinculadas a processos extrativos e exportadores, que geraram uma grande dependência e vulnerabilidade diante de crise externas, pouco ou nada se substancia em atividades colaborativas institucionais na região, embora a proximidade, a complementaridade econômica e os problemas urbanos e sociais comuns poderiam supor uma maior e melhor integração política e produtiva.
Exemplar também e’ a desigualdade da oferta de serviços  e equipamentos públicos, de  oferta de empregos e de acessos ao serviços de  assistência social nos  municípios limítrofes.
Do lado político, a legislação estadual pouco contribui para esta integração, colocando nas mãos únicas do poder estadual a gestão das empresas mais importantes de serviços públicos, o controle  e licenciamento do meio ambiente e subordinando as decisões metropolitanas a um conselho onde os municípios são minoria na sua composição e  nos processos decisórios mais significativos.
Do lado operacional e fiscal, a inexistência de fundos ou mecanismos  de compensação não estimula a  ação coordenada metropolitana na atração e fixação de novas empresas e negócios, a invenção, a expansão e a transferência  da inovação científica e tecnológica, o apoio as pequenas e medias empresas, o financiamento publico a projetos de interesse comum e na definição e construção de uma infra-estrutura física e virtual para potencializar a ações publicas e privadas.
Cabe também ressaltar que o governo do estado nos últimos governos não estruturou uma secretaria/ gerencia/ agencia, capaz e responsável pela gestão e  planejamento estratégico territorial metropolitano.
De um outro lado, os municípios , cada vez mais zelosos de suas autonomias, alem de ampliar seus quadros técnicos e burocráticos, tem disputado entre si recursos públicos e melhores posições e projetos , muitas vezes entrando em conflitos  e disputas desnecessárias .
O atual quadro político( relações harmoniosas) e econômico nacional e local( crescimento econômico acelerado e sustentado) contribui que possamos pensar e produzir ações concretas  e estratégicas para superar estes limites, acabar com a miséria e exclusão social, ampliar e  qualificar os serviços públicos, intervir nos processos econômicos e ao mesmo tempo impõem um quadro de urgência diante das aceleradas transformações demográficas, sociais e culturais, expressas nos resultados parciais do censo 2010 .
03/ 2011

domingo, 20 de março de 2011

Memoria: Desarmado


Por que ruas tão largas?
Por que ruas tão retas?
Meu passo torto foi regulado pelos becos tortos de onde veio,
carlos drumond de andrade

segunda-feira, 7 de março de 2011

“E qual é a medida dos meus dias?” salmo 38,5


Em uma cidade de Vitoria de tantos fracassos e projetos abortados em seus 460 anos de história provinciana, registradas em suas ruínas e nas falas de seus fantasmas, mais um futuro incerto se apresenta, agora de feito virtual, na sua articulação global, submetido às ordens do capital e das lógicas do mercado.


Poderemos superar este destino e nesta oposição cidade/mundo, vazadas as barreiras e fronteiras às imateriais e instantâneas ações e pensamentos, acelerados os movimentos dos corpos, bens e informação, e propor e viver a alegria e o prazer da finitude humana?
Começarei por um texto anotado ao acaso:
Estes dias não tem um ser verdadeiro;
Eles vão quase antes de chegar;
E quando vem, não podem continuar;
Comprimem-se uns contra os outros, seguem uns aos outros e não são capazes de interromper o próprio curso.
Do passado, nada é reconvocado;
O que é esperado é algo que há de passar novamente;
Ainda não é possuído, enquanto não tiver chegado;
Não pode ser capturado, depois que chega.
Este texto, que poderia ser tão atual, diante dos tempos que vivemos, é de Santo Agostinho, em Cidade dos Homens, quando se pronuncia diante do mundo antigo em transformação, de um império romano em colapso, no século IV:
Pergunta, como o salmista em Salmo 38,5:
 “E qual é a medida dos meus dias?”
E completa, na sua fé e esperança cristã:
“Eu anseio, por esse È que fica na Jerusalém, onde não haverá morte, onde não haverá fracasso, onde o dia não há de passar, um dia que não é precedido de um ontem, nem expulso por um amanhã.
Essa medida dos meus dias, o que é, digo eu, revela-te a mim.”
O desejo e’ da unidade, impossível, mas que precisa ser desejado como possibilidade na presença de um mundo em dissolução, onde nada é reconvocado, nada é possuído, onde a violência é o horizonte temporal da errancia, que aceita que uma promessa não se cumpra, um programa não se execute, como um movimento puro, uma fraternidade sem destino.
Violência, ausência, errância.
O poeta Paul Celan nos aponta uma potência:
Escrita estreita entre muros
Impraticável verdadeira
Esta
Ascensão e volta
No futuro claro coração.
Há um caminho, uma senda estreita entre muros, mas verdadeiro que seja, é impraticável, mas pensável.
Ali, nesta limitada passagem, onde valia a violência, sem destino ou fins, aparece, no limiar, a diferença mínima do alento do outro. 
Mas como fazer nossa esta alteridade?
A dificuldade primeira é que não existe um caminho já explorado, nada pré existe, nada antecipa esta tentativa, estamos sozinhos “diante do não navegado”, onde é preciso empreender a “ascensão e a volta”, que requer a voz e a presença do outro.
Este é o desafio.
Atuar no risco do movimento incessante, onde as posições se adquirem e se estabelecem, instáveis, através da circulação, dos bens, da informação e das pessoas, em um incessante conflito com o que se estabelece nos lugares pela transformação da matéria bruta pelo trabalho humano.
Atuar no risco da ação que se define, se altera se (re) conceitua no processo permanente de negociação coletiva, na feitura dos projetos, no desenho e na execução dos caminhos sem fins. 
Atuar no risco dos conflitos, na mobilidade dos acontecimentos, na diferença, no estar juntos e separados, espacialmente e socialmente, na disputa da riqueza material e simbólica, dos espaços e sítios. 
Atuar principalmente no tempo, para salvar o efêmero e o instante, contra o que tudo dissolve, contra o que tudo interrompe, contra o que tudo escapa e se desmancha no ar, por entre os ventos e brisas. 
Encerra Celan;
Do visível, do audível, a
Palavra tenda 
Que se libera:
Juntos.

sábado, 5 de março de 2011

Ventos e tempestades



Edifícios são objetos e sujeitos de nossos sonhos, flutuam em nossos desenhos e nossas mentes, vagam pelos ares circulando por entre altas nuvens até que possam pousar, em ofertas propícias, sobre os nossos sítios e lugares. 
Projetos são desejos que rasgam as manhãs e as tardes, enveredam sozinhos nas cidades, em contramão, como brisas que permeiam esperança nos estreitos intervalos das duras pedras de nossas ruas e solidões. 
São como ventos generosos que nos insuflam alegrias e possibilidades nunca imaginadas até serem pensadas e inventadas.
São como intempestivas tempestades a correr e mover os céus, empurrando ao longe as tristezas e melancolias do repetido, do banal e do igual.
E quando eles e elas cessam, ventos e tempestades, na calmaria da morte, somos menos e menores porque nos faltam a sua fala e o seu desígnio.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Na matéria das pedras

Nas cidades, há uma convivência de duas séries, do presente e do passado, onde as suas coisas materiais habitam simultaneamente as duas. Eduardo Gruner, em uma leitura de Walter Benjamin, diz: La arquitectura es el arte que más intensas y dramáticamente conserva la memória arcaica de las necessidades primarias de la espécie”. Para ele, a arquitetura é o lugar onde se desnuda a contradição, onde se expõem os conflitos entre os desejos mais arcaicos da humanidade, o desejo de reconciliação entre a natureza e o mundo e a realidade da alienação capitalista, do fetichismo da mercadoria, “ da impossibilidade do cumprimento cabal desta promessa de reconciliação”. Na arquitetura e na cidade, em suas ruínas superpostas da história dos vencedores, não basta a presença de uma memória critica, mas é necessário um choque, “um curto circuito com a infelicidade do presente”, para a constituição da memória antecipada do futuro redimido. E” preciso uma memória que desperte a nostalgia do que nunca existiu e a projete em direção a uma redenção futura através de uma mimesis transubjetiva.
Em algum momento, os objetos arquitetonicos participaram da feitura de um momento, abrigaram eventos, práticas e procedimentos, prazeres e dores, imprimiram em seus muros valores e significados de uma época e de uma cultura. O que continua, o que resta permanente, tentando informar um sentido cósmico à natureza e à phisis, à cultura e arte, o que se resta do que se esvai e se abre/ se esconde ao compartilhamento, à tradução, à tradição, estão suportados em registros construídos, para serem desvelados, em sua aparência quotidiana, nas cidades, nas suas sombras e seus edifícios, aos seus futuros ocupantes.
Ali, impressos na matéria das pedras e na ordem da formas, retém-se, para a interpretação e potencialização, acumulados por décadas e séculos, uma massa de informação, onde a superposição das ações históricas foi as misturando, contíguas e superpostas, que ao primeiro olhar curioso de possuí-las e organizá-las se segue imediatamente uma sensação de desconforto e desanimo. Como se não fosse possível desvencilhar os fios e tramas que as compuseram, ou, que quando possível, apenas se apresentasse à contemplação e `a leitura um texto ininteligível que nenhum código, por mais complexo ou universal, fosse capaz de recuperar parte ou a totalidade de seus sentidos originais.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Alguns lugares e edifícios


Alguns lugares e edifícios urbanos, ainda que aparentemente conservados, no tempo e no espaço, em suas totalidades físicas originárias, aparecem como formas melancólicas na experiência quotidiana ou excepcional. Fixados em antigos locais, encobertos com superpostas ações, do tempo natural e da história humana, tais lugares vão se tornando, ao passar dos anos, cada vez mais herméticos, velados à leitura sensível ou racional, principalmente quando situados nos centros das grandes cidades, onde radicais e apressadas transformações alteram o ambiente urbano e apagam as histórias dos acontecimentos para os quais foram desejados e construídos. Mesmo quando um projeto de preservação lhes busca devolver a matéria e a cor primeira, lhes tenta reajustar a ordem primitiva que os conformou, somente uma pálida aura sobrevive nesta ineficaz recuperação, deixando vazar, em pequenos instantâneos, fugazes brilhos dos eventos anunciados, mal refletindo nos olhares e nas calçadas as vontades e projetos que lhes deram forma, significado e estrutura.

No acúmulo urbano destes objetos contíguos ou superpostos, lançados em partes e fragmentos à uma possível compreensão futura, em uns mais, em outros menos, escapam de seus resíduos construídos pequenas partes, que ao desfiar da razão e sentimento embaralham-se, a princípio, sem sentidos.

Em outros se oferece o tecido desfeito, que ao acompanhar, atento, o risco do bordado de um pequeno motivo podemos recuperar o desenho completo, tal como uma tapeçaria que ao refazer a cauda do leão, a imagem completa da floresta, da caça e dos caçadores irrompe, com seus úmidos verdes, suas trompas e cachorros, cheiros e gritos, inundando de movimento, ruído, ouro e vida a manhã aristocrata.

Na primeira coleta e apreciação destes indícios, os sentidos humanos inicialmente se extasiam, surpresos com tanta maravilha e encanto, surpreendidos com tantos mistérios e novidades, que nem percebem a aflição que neles emana e contagia; que nem ouvem as suas falas miúdas interrompidas, que nem escutam as suas mudas fantasias.

Se deles, destes edifícios e lugares melancólicos, nos aproximamos e escutamos atentamente estes sussuros, logo afastamo-nos com horror. Deles, de suas frestas, de seus intervalos e vazios, escorrem uma longa lista de dores e sofrimentos. Deles, de suas paralisias e sombras, murmúrios escapam desejos insatisfeitos, exalam desencantos, expiam torturas.

Ao se acercar refeitos, de volta, em um outro dia ou instante, a estes lugares, poderemos nos surpreender com este fogo agora morto, apagado. Nem um brilho, uma luz, um cheiro, um som, a vazar daquele objeto que no dia anterior parecia refletir e expor, mesmo incompleto, um texto aberto ao múltiplo entendimento e à admiração. Aí, agora, nada mais parece articular os escombros, estruturar os vãos e paredes ainda de pé, aí, nada revela, à rua, as pessoas e acontecimentos que, porventura, se movem em seus interiores, por entre os móveis realizam seus afazeres quotidianos e já não se recordam dos outros, indivíduos e eventos, que, anteriores, ergueram os tetos e paredes e riscaram as suas faces. Nem um eco, nem um espírito. Neste momento, são expulsos para ao longe, suas vozes e escrituras, como se um vento forte tivesse varrido para sempre de cada canto, de cada detalhe, de cada pedra, as memórias e lembranças do passado.

Nas cidades, na minha e em tantas outras, há uma convivência, uma simultaneidade destas duas séries, uma linha do presente e a outra, eco do longínquo, onde todo objeto comum, material e construído, aparenta habitar ao mesmo tempo as duas presenças, deixando aparecer alternadamente, a seu gosto, uma ou outra face ao nosso olhar de curiosidade.

São experiências distintas ou uma única, esta aparente dupla e oposta percepção e entendimento do mesmo edifício ou lugar?

Dependem unicamente de nós, de nossa especial atenção ou descuido a eles dirigido, alterado pelo momento ou emoção, ou esta ambigüidade é da essência da própria coisa, que só se deixa aparecer por instantes, expondo-se aleatoriamente ou pouco suficiente ao seu gosto instável e incerto interesse?


domingo, 6 de fevereiro de 2011

Infinito


Não temo obstáculo de cristal ou vidro,
ascendo aos mundos das estrelas e me aventuro no infinito,
deixando a meus pés o globo terrestre
Giordano Bruno


O professor e arquiteto Paulo Mendes da Rocha, em Vitória , olhava o mar, no mesmo lugar onde ele depois projetou o Cais das Artes. e apontando o horizonte sem fim ensolarado, me dizia : " Veja a África, ela está logo ali", girou o corpo em uma mudança de 180 graus, mirou as montanhas que encerram o sítio natural da cidade a oeste, e continuou : " E o oceano Pacifico, fica logo após estes montes. Vitória é o porto, o portal que liga a África `a América Latina ".
O que faz que quando olhamos o mundo, com os pés sobre o solo, muitos olhos identifiquem os limites, se regozijem e se submetam com a demarcação, as cercas e os muros, e ao mesmo tempo outros, nos mesmos lugares, identifiquem e percebam o ilimitado, o infinito, o que está além das fronteiras, o que ultrapassa o ponto de fuga próximo?
Vendo menos, será possível imaginar mais”, diz Rosseau.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Teatro Gloria

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Teatro Glória


Talvez seja melhor ser como as pedras, como os montes, como o mar, estáticos e cegos ao ritmo curto das horas, dos meses, dos anos. Deixar ser, paralisado, acompanhar ao movimento perpetuo dos séculos, lentos, imóveis em sua intimidade. Deixando estar para atentar, ao acordar acionar o relembrar involuntário, como Proust, diante da “ mesma sineta que ainda repercutia em mim “, e assim tivesse que me recolher, incorporar o tempo, colocar entre ela e o dado presente, “ todo o passado, que eu não supunha carregar, a desenrolar-se indefinidamente”.


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

David Protti


Há uma contradição anterior à fala, quando é, nos foi dado do ilimitado o limitado horizonte, separados os dias e as noites, o nada e o múltiplo, o bruto e as coisas feitas recortadas contra o fundo, informadas pela mão divina, uma divisão anterior ao pecado, à babel, à queda e à esperança da redenção.


Como todos os homens, penado pela parte, condenado aos fragmentos, o fotógrafo armado de seu artificio, a ser marcado em sal e prata, atravessa a sua cidade adotada, ascende aos seus morros, sobrecarregado por lentes, pesos e lembranças, lançada sua vista e sua pele aos ventos e aos ares da beira mar reincidentes.


Repara a imagem retida os pedaços subtraídos ao olho?

Almeja.

Panorama.


Imaginaria ser possível, calçado com as botas de polegar, disposto com as escalas de Gulliver, passar ao largo do imediato continente, pelas partes e pelo todo, esticando quebra-cabeças por entre as nuvens para ultrapassar as duras montanhas, esticar a água, vazar o canal que a tudo contorna, que a tudo abraça e reúne.


São registros horizontais que ambicionam conter o máximo, esticando o restrito foco humano a largas e longas distancias, circulando o olhar contra o permanente mover da cidade e de seus habitantes, diante a estática e imóvel natureza.

Lançada a pedra em funda contra o tonto Golias, retorna vitorioso, David, ao lado dos outros, dos seus, junto à língua e à terra originais.


Poderemos reconhecer cada ponto anotado, desligada a máquina e o instrumento abarcador, submetido, novamente, o corpo às duras penas do limitado caminhante, de músculos e ossos cansados, quando novamente somos envolvidos no afã da vida e do quotidiano?


Sonhemos com a Vitória, desejemos o impossível, avancemos todos à unidade corrompida, cada um com a sua singularidade despedaçada, cada um com suas pernas, mentes e coração.


Caminhemos nesta companhia, da cidade e de sua paisagem, e quando a repetida tarefa nos impor o repetido ritmo da solidão e da melancolia, liberemos a moldura desta tela a outros vôos, rompidas as cordas e os encantos, caminhemos, caminhemos sem saber onde chegar.

Talvez que na volta te encontre no mesmo lugar.




sábado, 22 de janeiro de 2011

Peter e suas portas


Sim, do caminho reto

Como mensageiros se afastam os elementos cativos

E as antigas leis da terra.

Hoderlin


Penetrar em uma cidade, por seu ares, mares e terras, pode ser um dos caminhos para conhecê-la e amá-la. Em uma cidade ilha, como Vitória, onde as suas portas se confundem com suas pontes, divagar entre as suas várias escalas e limites faz que sonhos e oportunidades se movimentem diante do observador de acordo com suas chances de chegada, suas escolhas de percursos e olhares, suas posições relativas nas paisagens e passagens de seu território.

Peter, como outros que aqui chegaram e se apaixonaram, move-se no desafio de tantos, de perder-se e encontrar-se, utilizando-se das três passagens, aproximando-se de Vitória pelas entradas do céu, da terra e do mar, “ três anúncios da cidade”, pelas suas“ três faces que vejo ao mesmo tempo que me encaram”, que me apresentam respostas, mas que me também me fazem outras perguntas.

Para cada caminho que percorro, em cada escolha, outra direções me indicam saídas, entradas e portais, mas “para onde devo seguir?”. Para cada percurso, diz Proust, como em Veneza, “não vejo senão isto que possa... fazer surgir do que julgávamos uma coisa de aspecto definido, as cem outras coisas que ela igualmente é, pois cada uma delas refere-se a uma perspectiva não menos legitima”.

São também três os limites, que em amplo triângulo geográfico me conduzem da metrópole a este dilema. Para estar dentro ou estar fora faz-se necessário invadir a sua delimitação, assumir um campo que guarda e recolhe os seus fantasmas e mistérios, assumir uma figura com seus vértices no mestre Álvaro, ou será Alvo, sempre coberto de nuvens, no outeiro e convento da Penha, e que completa no monte Moxuara, com seu perfil, em sombra guardando o acesso as verdes montanhas.

Mas ultrapassadas estas fronteiras, geográficas, somos lançados nos fragmentos, nas suas fraturas e descontinuidades artificiais, onde a história, seus feitos e fatos marcaram e demarcam sobre o solo, deixaram em riscos os prazeres e dores dos seus homens e mulheres. Ultrapassar estas passagens, que Peter indica, informa e mostra, suas portas do céu, do mar e da terra, é lançar-se no conflito, na desigualdade, na desordem, no divino e no mortal, no sagrado e no profano.

Quando os projetos inconclusos pareciam fazer uma realidade urbana permanente, os ventos do oriente trazem boas novas, a cidade se estranha, seus tempos e lugares parecem ser atropelados por um outro progresso, global, instantâneo, veloz, que submerge em pó as melancolias, rompe os incabamentos, apresentando transformações nunca vistos, estrangeiros nunca conhecidos, trabalhos imateriais nunca vividos.

Conseguiremos sermos nós e os outros, adicionar ao passado incompleto o futuro surpreendente, exercer o maravilhoso, na borda do vazio que torna seu próprio desvio, e assim tentar superpor aos restos e riscos, às sobras e ruínas, o desenho do impossível desejo?

Uma necessidade se aproxima, é urgente neste momento. Livrarmo-nos do peso que sucumbe, da herança histórica da exploração e do sofrimento, do isolamento e da exclusão provinciana que esmaga e submete. Esta bagagem, em camadas cristalizadas, nos incomoda, nos impõem limites e fronteiras. Cabe como no salto do tigre, fazer luzir sobre estas ruínas, resgatar os suores dos escravos, dos imigrantes, dos jovens, dos seus sonhos e visões. Desvelar as potências entranhadas em suas permanências, esgotadas em suas descrições acadêmicas, voar sobre o peso de suas construções e máquinas.

“ Os vazios revelam a cidade”, conclui Peter, desvelam seus inefáveis movimentos, seus ventos e brisas marinhas, misturando seus elementos originais aos que foram surgindo, feito pedra sobre pedra, deixando rastros e ruínas, riscando uma melange de astros e eventos em constelação que revelam ao olhar curioso as singularidades de seu sitio e de seus acontecimentos. Na fidelidade ao evento, “ fonte e fuga de si mesmo”, o território á artificio é “ migração, errância, imediata proximidade do longínquo”.

Revela-se, assim, o presépio que é a cidade. Seu ser, sua essência, seus montes, estrelas e cometas, seus magos e crentes, seus muitos curiosos, em torno de uma discreta manjedoura para abrigar o fato primordial do nascimento, com a fortuna traçada desde a concepção, desde o início dos tempos, desde a queda original, desde a perda e falta primeira.

Uma multidão irrompe em muitos, invade criativa este cenário datado, abandona a periferia e se aproxima junto, rompe estas determinações e limitações, soma, multiplica acertos e imperfeições, insatisfeita e feliz, torna-se real nesta “ coisa única que é um lugar” .

“Três entradas, três percursos “, onde a presença de um traz sempre a falta do outro forcluido, quando a escolha de uma nos convida à viagem, ao movimento, ao salto miraculoso que pode ser capaz de unir duas individualidade separadas.

Onde em seus vazios, eternos e fugidios, contínuos e transformados, onde em suas inúmeras revelações, uma outra cidade, um outro puzzle, um outro presépio, repleto de renovadas paisagens e passagens, se faz, se desvela, se reconfigura permanentemente.

Quem sabe assim...




sábado, 8 de janeiro de 2011

Vento Vitoria

Mas será tarde demais; e eu seguirei sem voz

entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

Eugenio Montale


Vitória. Há uma carícia junto à pele causada pelo vento que se desvia de edificações e me traz o cheiro do mar, aquele mais longe, sem fim no horizonte, e que imagino fica logo aí, o mundo, começa logo depois dos morros, depois do Penedo, pequeno Pão de Açúcar da província, como uma irreal imitação da loja de souvenir.

Reconheço a sua face, Vitória, Brasil, e pergunto-me se há salvação ao seu destino refletido nos astros, descritos de antemão na linha fina de vida, condenados todos os seus moradores, por antecipação e fatalidade, na vaidade e orgulho original de Adão, à danação a ser espantada, expiada em sua fundação.

Reconheço quando por aqui permaneço.

Reconheço quando me movimento em suas irmãs de destino e aflição.

Reconheço, em cada desembarque na cidade desconhecida, já na porta da estação, as pequenas marcas desta partilhada exaustão. Em algumas, são mais explícitos os seus registros, apontam logo, ao viajante, suas penas. Em outras, tímidas e desconfiadas, são mais sutis as marcas de maldição, precisando se acercar a pé em becos e pátios escondidos, em direção a portas e janelas desajustadas, para colher de improviso alguns resíduos desta dor universal, e, no entanto, diz Petrarco: “Eu me deleito com estas penas e estas dores, ... que se me vêm tirar de mim disso, é apesar de mim”.


Vitória está em cada lado e na outra margem de canal, do rio e do grande mar, em cada singular edifício, em detalhes de portas e paredes reproduzidas em série ou em isoladas criaturas espantando, nas esquinas, maus olhados e feitiços.

Vitória está lá, está aqui, por aí, para ser redescoberta, na beira do mar, na linha do cais, nos escuros becos e largas praças, nas tortas e retas ruas e íngremes escadas, na subida do palácio onde, “À direita da escadaria, um pé de fruta-pão e uma mangueira se entrelaçavam em grandes ramagens ”.

Vitória está aqui dentro, em cada pedaço do pedaço, em meu coração e cabeça, em cada palavra dita, degustada e escondida em minha boca, já o que nós “vemos das coisas são coisas, por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?

Vitória está descoberta à perdição, à traição.

“Bem contra a vontade é que estou aqui: quando verei as paragens onde nasci?

“, anotou Auguste Saint Hilaire, em visita ao Espírito Santo, os versos que um gentio cantava.







Vento Vitoria

Mas será tarde demais; e eu seguirei sem voz

entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

Eugenio Montale


Vitória. Há uma carícia junto à pele causada pelo vento que se desvia de edificações e me traz o cheiro do mar, aquele mais longe, sem fim no horizonte, e que imagino fica logo aí, o mundo, começa logo depois dos morros, depois do Penedo, pequeno Pão de Açúcar da província, como uma irreal imitação da loja de souvenir.

Reconheço a sua face, Vitória, Brasil, e pergunto-me se há salvação ao seu destino refletido nos astros, descritos de antemão na linha fina de vida, condenados todos os seus moradores, por antecipação e fatalidade, na vaidade e orgulho original de Adão, à danação a ser espantada, expiada em sua fundação.

Reconheço quando por aqui permaneço.

Reconheço quando me movimento em suas irmãs de destino e aflição.

Reconheço, em cada desembarque na cidade desconhecida, já na porta da estação, as pequenas marcas desta partilhada exaustão. Em algumas, são mais explícitos os seus registros, apontam logo, ao viajante, suas penas. Em outras, tímidas e desconfiadas, são mais sutis as marcas de maldição, precisando se acercar a pé em becos e pátios escondidos, em direção a portas e janelas desajustadas, para colher de improviso alguns resíduos desta dor universal, e, no entanto, diz Petrarco: “Eu me deleito com estas penas e estas dores, ... que se me vêm tirar de mim disso, é apesar de mim”.


Vitória está em cada lado e na outra margem de canal, do rio e do grande mar, em cada singular edifício, em detalhes de portas e paredes reproduzidas em série ou em isoladas criaturas espantando, nas esquinas, maus olhados e feitiços.

Vitória está lá, está aqui, por aí, para ser redescoberta, na beira do mar, na linha do cais, nos escuros becos e largas praças, nas tortas e retas ruas e íngremes escadas, na subida do palácio onde, “À direita da escadaria, um pé de fruta-pão e uma mangueira se entrelaçavam em grandes ramagens ”.

Vitória está aqui dentro, em cada pedaço do pedaço, em meu coração e cabeça, em cada palavra dita, degustada e escondida em minha boca, já o que nós “vemos das coisas são coisas, por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?

Vitória está descoberta à perdição, à traição.

“Bem contra a vontade é que estou aqui: quando verei as paragens onde nasci?

“, anotou Auguste Saint Hilaire, em visita ao Espírito Santo, os versos que um gentio cantava.







Exílio



Falar do exílio da terra natal, pois podeis, está escrito em vossas paredes, em suas viagens, encontrar outras terras, diferentes, suntuosas ou maiores, mas nunca igual a sua, abençoada sobre o lume do fogo, inscrita nas cadernetas de avós, ao lado da listas, das contas de deveres e haveres, os nascimentos, os casamentos e as mortes que perpetuavam a história das famílias.
Desencantado o mundo, somente os fragmentos são percebidos, em alta velocidade, desajustados, incapazes que somos de colar os seus pedaços estilhaçados em um todo coerente que nos reinstale no mundo.
Exilado dos lugares e dos outros.
_” e ainda me dizeis que o exílio não é a morte ?, me recorda Romeu.
Aventureiros e viajantes sempre foram os homens, a se afastar da casa para afrontar os mares e céus em busca de longínquas terras, de seus tesouros e lugares protegidos por perigosos dragões e mágicas indestrutíveis. Os relatos de viagens, desde Ulisses, e das suas viagens de volta ao lar, se repetiram como epopéias em cada tempo quando, ao se lançarem em aventuras, os homens encontraram outros desejos, outras civilizações e povos, eldorados e terras prometidas. Mas em cada percurso, no meio de perigos e momentos de dúvida, era a lembrança do porto, da mulher, das campinas verdejantes, que mantinham a coragem, a determinação e a esperança no caminho, mesmo quando no movimento, na viagem, se faz a difícil e conflituosa relação com os estrangeiros. Outros.
A procura do paraíso terrestre foi um das motivações, em todos as horas, dos navegadores. O caminho de sua descoberta é sempre perigoso, exige enfrentar e superar uma imensidão de obstáculos que bloqueiam o acesso, expõem as múltiplas realidades do mal. O paraíso existirá em algum lugar. No Oriente, na Índia, na África, no reino do Preste João, ou além do oceano Atlântico, “mar de lodo e trevas”, o Éden aguarda o seu encontro, ser redescoberto.
Exilar-se, ser expulso da cidade, significa afastar-se dos eventos e elementos físicos que identificam com os mais próximos deuses, os afetos, as paisagens. Significa abandonar a identidade individual e coletiva, a estabilidade ancorada na história, nas rememorações das festas, dos sítios, do território natural e artificial, onde os monumentos ancoram a permanência, a duração, a continuidade.
Estar exilado é perder-se, significa ser privado da audição da língua materna, substituída pelos ruídos bárbaros, onde se faz esquecer a voz original, e “ Quando me esforço por falar-...- Muitas vezes faltam-me as palavras, esqueci-as”.

Nas cidades, estas questões foram ampliadas a uma escala concreta, a uma dimensão sensível desmesurada. Construída de superpostas ações e eventos, em pedra e cal, em tijolos e telhas, suor e trabalho, suas marcas materiais são lidas a contrapelo, experimentadas pelo corpo,- “uma cidade se conhece como os homens, pelo andar”-, a perambular pela suas ruas e percursos, caminhos que ensinam a recordar. Mesmo quando as festas se esgotaram e os rituais coletivos se transformaram em recitativos, em mecânicos gestos, repetições, os edifícios indicam, alvejam em suas janelas e portas, e as ruas apontam em suas esquinas, outras lembranças, ainda vivas. Músculos que se retesaram em sua construção, mãos que se desgastaram em sua confecção, corpos e mentes a vagar com os olhares apagados, gritando em seus últimos pedidos: “ falem de nossa história, recordem-se de nós, faça-nos viver, vocês que estão vivos ”, e mesmo atarefados com o futuro, ou porque, atentos com o futuro, os olhos arregalados com tamanho sofrimento, não podemos deixar que nossos mortos sejam abandonados, e falamos deles.
“Não somos impotentes - nós, pálidas pedras,
“Todo o nosso poder não se foi - nem a fama -
“Nem toda a mágica de nosso alto renome -
“Nem a maravilha que aqui nos rodeia -
“Nem todos os mistérios que em nós permanecem
“Nem todas memórias que pairam acima
“E estão girando em torno de nós qual vestuário
“Guarnecendo-nos num manto maior que a glória. “


Para Marcel Proust, “os seres humanos aparecem em certos locais que lhe servem de suporte e moldura, e que determinam a perspectiva segundo a qual nos é permitido vê-los”.
As pessoas se mostram em lugares definidos, e como as paisagens, são vistas quando qualificados por um dispositivo espacial, que demarca pontos e recortes especiais para a sua observação.
Longe destas regras, as pessoas escapam no quotidiano, escapolem por entre as faixas de transito, por entre o movimento das multidões, se transformam em invisíveis fantasmas, sem reflexos nos espelhos e nas estórias contadas. Optam, sem alternativas, em serem anônimos rostos, sem reconhecimento, sem documento, apenas passantes, sem deixar os seus registros. Lembranças.
Cabe deixá-las em paz.