sábado, 29 de janeiro de 2011

Teatro Gloria

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Teatro Glória


Talvez seja melhor ser como as pedras, como os montes, como o mar, estáticos e cegos ao ritmo curto das horas, dos meses, dos anos. Deixar ser, paralisado, acompanhar ao movimento perpetuo dos séculos, lentos, imóveis em sua intimidade. Deixando estar para atentar, ao acordar acionar o relembrar involuntário, como Proust, diante da “ mesma sineta que ainda repercutia em mim “, e assim tivesse que me recolher, incorporar o tempo, colocar entre ela e o dado presente, “ todo o passado, que eu não supunha carregar, a desenrolar-se indefinidamente”.


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

David Protti


Há uma contradição anterior à fala, quando é, nos foi dado do ilimitado o limitado horizonte, separados os dias e as noites, o nada e o múltiplo, o bruto e as coisas feitas recortadas contra o fundo, informadas pela mão divina, uma divisão anterior ao pecado, à babel, à queda e à esperança da redenção.


Como todos os homens, penado pela parte, condenado aos fragmentos, o fotógrafo armado de seu artificio, a ser marcado em sal e prata, atravessa a sua cidade adotada, ascende aos seus morros, sobrecarregado por lentes, pesos e lembranças, lançada sua vista e sua pele aos ventos e aos ares da beira mar reincidentes.


Repara a imagem retida os pedaços subtraídos ao olho?

Almeja.

Panorama.


Imaginaria ser possível, calçado com as botas de polegar, disposto com as escalas de Gulliver, passar ao largo do imediato continente, pelas partes e pelo todo, esticando quebra-cabeças por entre as nuvens para ultrapassar as duras montanhas, esticar a água, vazar o canal que a tudo contorna, que a tudo abraça e reúne.


São registros horizontais que ambicionam conter o máximo, esticando o restrito foco humano a largas e longas distancias, circulando o olhar contra o permanente mover da cidade e de seus habitantes, diante a estática e imóvel natureza.

Lançada a pedra em funda contra o tonto Golias, retorna vitorioso, David, ao lado dos outros, dos seus, junto à língua e à terra originais.


Poderemos reconhecer cada ponto anotado, desligada a máquina e o instrumento abarcador, submetido, novamente, o corpo às duras penas do limitado caminhante, de músculos e ossos cansados, quando novamente somos envolvidos no afã da vida e do quotidiano?


Sonhemos com a Vitória, desejemos o impossível, avancemos todos à unidade corrompida, cada um com a sua singularidade despedaçada, cada um com suas pernas, mentes e coração.


Caminhemos nesta companhia, da cidade e de sua paisagem, e quando a repetida tarefa nos impor o repetido ritmo da solidão e da melancolia, liberemos a moldura desta tela a outros vôos, rompidas as cordas e os encantos, caminhemos, caminhemos sem saber onde chegar.

Talvez que na volta te encontre no mesmo lugar.




sábado, 22 de janeiro de 2011

Peter e suas portas


Sim, do caminho reto

Como mensageiros se afastam os elementos cativos

E as antigas leis da terra.

Hoderlin


Penetrar em uma cidade, por seu ares, mares e terras, pode ser um dos caminhos para conhecê-la e amá-la. Em uma cidade ilha, como Vitória, onde as suas portas se confundem com suas pontes, divagar entre as suas várias escalas e limites faz que sonhos e oportunidades se movimentem diante do observador de acordo com suas chances de chegada, suas escolhas de percursos e olhares, suas posições relativas nas paisagens e passagens de seu território.

Peter, como outros que aqui chegaram e se apaixonaram, move-se no desafio de tantos, de perder-se e encontrar-se, utilizando-se das três passagens, aproximando-se de Vitória pelas entradas do céu, da terra e do mar, “ três anúncios da cidade”, pelas suas“ três faces que vejo ao mesmo tempo que me encaram”, que me apresentam respostas, mas que me também me fazem outras perguntas.

Para cada caminho que percorro, em cada escolha, outra direções me indicam saídas, entradas e portais, mas “para onde devo seguir?”. Para cada percurso, diz Proust, como em Veneza, “não vejo senão isto que possa... fazer surgir do que julgávamos uma coisa de aspecto definido, as cem outras coisas que ela igualmente é, pois cada uma delas refere-se a uma perspectiva não menos legitima”.

São também três os limites, que em amplo triângulo geográfico me conduzem da metrópole a este dilema. Para estar dentro ou estar fora faz-se necessário invadir a sua delimitação, assumir um campo que guarda e recolhe os seus fantasmas e mistérios, assumir uma figura com seus vértices no mestre Álvaro, ou será Alvo, sempre coberto de nuvens, no outeiro e convento da Penha, e que completa no monte Moxuara, com seu perfil, em sombra guardando o acesso as verdes montanhas.

Mas ultrapassadas estas fronteiras, geográficas, somos lançados nos fragmentos, nas suas fraturas e descontinuidades artificiais, onde a história, seus feitos e fatos marcaram e demarcam sobre o solo, deixaram em riscos os prazeres e dores dos seus homens e mulheres. Ultrapassar estas passagens, que Peter indica, informa e mostra, suas portas do céu, do mar e da terra, é lançar-se no conflito, na desigualdade, na desordem, no divino e no mortal, no sagrado e no profano.

Quando os projetos inconclusos pareciam fazer uma realidade urbana permanente, os ventos do oriente trazem boas novas, a cidade se estranha, seus tempos e lugares parecem ser atropelados por um outro progresso, global, instantâneo, veloz, que submerge em pó as melancolias, rompe os incabamentos, apresentando transformações nunca vistos, estrangeiros nunca conhecidos, trabalhos imateriais nunca vividos.

Conseguiremos sermos nós e os outros, adicionar ao passado incompleto o futuro surpreendente, exercer o maravilhoso, na borda do vazio que torna seu próprio desvio, e assim tentar superpor aos restos e riscos, às sobras e ruínas, o desenho do impossível desejo?

Uma necessidade se aproxima, é urgente neste momento. Livrarmo-nos do peso que sucumbe, da herança histórica da exploração e do sofrimento, do isolamento e da exclusão provinciana que esmaga e submete. Esta bagagem, em camadas cristalizadas, nos incomoda, nos impõem limites e fronteiras. Cabe como no salto do tigre, fazer luzir sobre estas ruínas, resgatar os suores dos escravos, dos imigrantes, dos jovens, dos seus sonhos e visões. Desvelar as potências entranhadas em suas permanências, esgotadas em suas descrições acadêmicas, voar sobre o peso de suas construções e máquinas.

“ Os vazios revelam a cidade”, conclui Peter, desvelam seus inefáveis movimentos, seus ventos e brisas marinhas, misturando seus elementos originais aos que foram surgindo, feito pedra sobre pedra, deixando rastros e ruínas, riscando uma melange de astros e eventos em constelação que revelam ao olhar curioso as singularidades de seu sitio e de seus acontecimentos. Na fidelidade ao evento, “ fonte e fuga de si mesmo”, o território á artificio é “ migração, errância, imediata proximidade do longínquo”.

Revela-se, assim, o presépio que é a cidade. Seu ser, sua essência, seus montes, estrelas e cometas, seus magos e crentes, seus muitos curiosos, em torno de uma discreta manjedoura para abrigar o fato primordial do nascimento, com a fortuna traçada desde a concepção, desde o início dos tempos, desde a queda original, desde a perda e falta primeira.

Uma multidão irrompe em muitos, invade criativa este cenário datado, abandona a periferia e se aproxima junto, rompe estas determinações e limitações, soma, multiplica acertos e imperfeições, insatisfeita e feliz, torna-se real nesta “ coisa única que é um lugar” .

“Três entradas, três percursos “, onde a presença de um traz sempre a falta do outro forcluido, quando a escolha de uma nos convida à viagem, ao movimento, ao salto miraculoso que pode ser capaz de unir duas individualidade separadas.

Onde em seus vazios, eternos e fugidios, contínuos e transformados, onde em suas inúmeras revelações, uma outra cidade, um outro puzzle, um outro presépio, repleto de renovadas paisagens e passagens, se faz, se desvela, se reconfigura permanentemente.

Quem sabe assim...




sábado, 8 de janeiro de 2011

Vento Vitoria

Mas será tarde demais; e eu seguirei sem voz

entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

Eugenio Montale


Vitória. Há uma carícia junto à pele causada pelo vento que se desvia de edificações e me traz o cheiro do mar, aquele mais longe, sem fim no horizonte, e que imagino fica logo aí, o mundo, começa logo depois dos morros, depois do Penedo, pequeno Pão de Açúcar da província, como uma irreal imitação da loja de souvenir.

Reconheço a sua face, Vitória, Brasil, e pergunto-me se há salvação ao seu destino refletido nos astros, descritos de antemão na linha fina de vida, condenados todos os seus moradores, por antecipação e fatalidade, na vaidade e orgulho original de Adão, à danação a ser espantada, expiada em sua fundação.

Reconheço quando por aqui permaneço.

Reconheço quando me movimento em suas irmãs de destino e aflição.

Reconheço, em cada desembarque na cidade desconhecida, já na porta da estação, as pequenas marcas desta partilhada exaustão. Em algumas, são mais explícitos os seus registros, apontam logo, ao viajante, suas penas. Em outras, tímidas e desconfiadas, são mais sutis as marcas de maldição, precisando se acercar a pé em becos e pátios escondidos, em direção a portas e janelas desajustadas, para colher de improviso alguns resíduos desta dor universal, e, no entanto, diz Petrarco: “Eu me deleito com estas penas e estas dores, ... que se me vêm tirar de mim disso, é apesar de mim”.


Vitória está em cada lado e na outra margem de canal, do rio e do grande mar, em cada singular edifício, em detalhes de portas e paredes reproduzidas em série ou em isoladas criaturas espantando, nas esquinas, maus olhados e feitiços.

Vitória está lá, está aqui, por aí, para ser redescoberta, na beira do mar, na linha do cais, nos escuros becos e largas praças, nas tortas e retas ruas e íngremes escadas, na subida do palácio onde, “À direita da escadaria, um pé de fruta-pão e uma mangueira se entrelaçavam em grandes ramagens ”.

Vitória está aqui dentro, em cada pedaço do pedaço, em meu coração e cabeça, em cada palavra dita, degustada e escondida em minha boca, já o que nós “vemos das coisas são coisas, por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?

Vitória está descoberta à perdição, à traição.

“Bem contra a vontade é que estou aqui: quando verei as paragens onde nasci?

“, anotou Auguste Saint Hilaire, em visita ao Espírito Santo, os versos que um gentio cantava.







Vento Vitoria

Mas será tarde demais; e eu seguirei sem voz

entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.

Eugenio Montale


Vitória. Há uma carícia junto à pele causada pelo vento que se desvia de edificações e me traz o cheiro do mar, aquele mais longe, sem fim no horizonte, e que imagino fica logo aí, o mundo, começa logo depois dos morros, depois do Penedo, pequeno Pão de Açúcar da província, como uma irreal imitação da loja de souvenir.

Reconheço a sua face, Vitória, Brasil, e pergunto-me se há salvação ao seu destino refletido nos astros, descritos de antemão na linha fina de vida, condenados todos os seus moradores, por antecipação e fatalidade, na vaidade e orgulho original de Adão, à danação a ser espantada, expiada em sua fundação.

Reconheço quando por aqui permaneço.

Reconheço quando me movimento em suas irmãs de destino e aflição.

Reconheço, em cada desembarque na cidade desconhecida, já na porta da estação, as pequenas marcas desta partilhada exaustão. Em algumas, são mais explícitos os seus registros, apontam logo, ao viajante, suas penas. Em outras, tímidas e desconfiadas, são mais sutis as marcas de maldição, precisando se acercar a pé em becos e pátios escondidos, em direção a portas e janelas desajustadas, para colher de improviso alguns resíduos desta dor universal, e, no entanto, diz Petrarco: “Eu me deleito com estas penas e estas dores, ... que se me vêm tirar de mim disso, é apesar de mim”.


Vitória está em cada lado e na outra margem de canal, do rio e do grande mar, em cada singular edifício, em detalhes de portas e paredes reproduzidas em série ou em isoladas criaturas espantando, nas esquinas, maus olhados e feitiços.

Vitória está lá, está aqui, por aí, para ser redescoberta, na beira do mar, na linha do cais, nos escuros becos e largas praças, nas tortas e retas ruas e íngremes escadas, na subida do palácio onde, “À direita da escadaria, um pé de fruta-pão e uma mangueira se entrelaçavam em grandes ramagens ”.

Vitória está aqui dentro, em cada pedaço do pedaço, em meu coração e cabeça, em cada palavra dita, degustada e escondida em minha boca, já o que nós “vemos das coisas são coisas, por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?

Vitória está descoberta à perdição, à traição.

“Bem contra a vontade é que estou aqui: quando verei as paragens onde nasci?

“, anotou Auguste Saint Hilaire, em visita ao Espírito Santo, os versos que um gentio cantava.







Exílio



Falar do exílio da terra natal, pois podeis, está escrito em vossas paredes, em suas viagens, encontrar outras terras, diferentes, suntuosas ou maiores, mas nunca igual a sua, abençoada sobre o lume do fogo, inscrita nas cadernetas de avós, ao lado da listas, das contas de deveres e haveres, os nascimentos, os casamentos e as mortes que perpetuavam a história das famílias.
Desencantado o mundo, somente os fragmentos são percebidos, em alta velocidade, desajustados, incapazes que somos de colar os seus pedaços estilhaçados em um todo coerente que nos reinstale no mundo.
Exilado dos lugares e dos outros.
_” e ainda me dizeis que o exílio não é a morte ?, me recorda Romeu.
Aventureiros e viajantes sempre foram os homens, a se afastar da casa para afrontar os mares e céus em busca de longínquas terras, de seus tesouros e lugares protegidos por perigosos dragões e mágicas indestrutíveis. Os relatos de viagens, desde Ulisses, e das suas viagens de volta ao lar, se repetiram como epopéias em cada tempo quando, ao se lançarem em aventuras, os homens encontraram outros desejos, outras civilizações e povos, eldorados e terras prometidas. Mas em cada percurso, no meio de perigos e momentos de dúvida, era a lembrança do porto, da mulher, das campinas verdejantes, que mantinham a coragem, a determinação e a esperança no caminho, mesmo quando no movimento, na viagem, se faz a difícil e conflituosa relação com os estrangeiros. Outros.
A procura do paraíso terrestre foi um das motivações, em todos as horas, dos navegadores. O caminho de sua descoberta é sempre perigoso, exige enfrentar e superar uma imensidão de obstáculos que bloqueiam o acesso, expõem as múltiplas realidades do mal. O paraíso existirá em algum lugar. No Oriente, na Índia, na África, no reino do Preste João, ou além do oceano Atlântico, “mar de lodo e trevas”, o Éden aguarda o seu encontro, ser redescoberto.
Exilar-se, ser expulso da cidade, significa afastar-se dos eventos e elementos físicos que identificam com os mais próximos deuses, os afetos, as paisagens. Significa abandonar a identidade individual e coletiva, a estabilidade ancorada na história, nas rememorações das festas, dos sítios, do território natural e artificial, onde os monumentos ancoram a permanência, a duração, a continuidade.
Estar exilado é perder-se, significa ser privado da audição da língua materna, substituída pelos ruídos bárbaros, onde se faz esquecer a voz original, e “ Quando me esforço por falar-...- Muitas vezes faltam-me as palavras, esqueci-as”.

Nas cidades, estas questões foram ampliadas a uma escala concreta, a uma dimensão sensível desmesurada. Construída de superpostas ações e eventos, em pedra e cal, em tijolos e telhas, suor e trabalho, suas marcas materiais são lidas a contrapelo, experimentadas pelo corpo,- “uma cidade se conhece como os homens, pelo andar”-, a perambular pela suas ruas e percursos, caminhos que ensinam a recordar. Mesmo quando as festas se esgotaram e os rituais coletivos se transformaram em recitativos, em mecânicos gestos, repetições, os edifícios indicam, alvejam em suas janelas e portas, e as ruas apontam em suas esquinas, outras lembranças, ainda vivas. Músculos que se retesaram em sua construção, mãos que se desgastaram em sua confecção, corpos e mentes a vagar com os olhares apagados, gritando em seus últimos pedidos: “ falem de nossa história, recordem-se de nós, faça-nos viver, vocês que estão vivos ”, e mesmo atarefados com o futuro, ou porque, atentos com o futuro, os olhos arregalados com tamanho sofrimento, não podemos deixar que nossos mortos sejam abandonados, e falamos deles.
“Não somos impotentes - nós, pálidas pedras,
“Todo o nosso poder não se foi - nem a fama -
“Nem toda a mágica de nosso alto renome -
“Nem a maravilha que aqui nos rodeia -
“Nem todos os mistérios que em nós permanecem
“Nem todas memórias que pairam acima
“E estão girando em torno de nós qual vestuário
“Guarnecendo-nos num manto maior que a glória. “


Para Marcel Proust, “os seres humanos aparecem em certos locais que lhe servem de suporte e moldura, e que determinam a perspectiva segundo a qual nos é permitido vê-los”.
As pessoas se mostram em lugares definidos, e como as paisagens, são vistas quando qualificados por um dispositivo espacial, que demarca pontos e recortes especiais para a sua observação.
Longe destas regras, as pessoas escapam no quotidiano, escapolem por entre as faixas de transito, por entre o movimento das multidões, se transformam em invisíveis fantasmas, sem reflexos nos espelhos e nas estórias contadas. Optam, sem alternativas, em serem anônimos rostos, sem reconhecimento, sem documento, apenas passantes, sem deixar os seus registros. Lembranças.
Cabe deixá-las em paz.