sábado, 22 de janeiro de 2011

Peter e suas portas


Sim, do caminho reto

Como mensageiros se afastam os elementos cativos

E as antigas leis da terra.

Hoderlin


Penetrar em uma cidade, por seu ares, mares e terras, pode ser um dos caminhos para conhecê-la e amá-la. Em uma cidade ilha, como Vitória, onde as suas portas se confundem com suas pontes, divagar entre as suas várias escalas e limites faz que sonhos e oportunidades se movimentem diante do observador de acordo com suas chances de chegada, suas escolhas de percursos e olhares, suas posições relativas nas paisagens e passagens de seu território.

Peter, como outros que aqui chegaram e se apaixonaram, move-se no desafio de tantos, de perder-se e encontrar-se, utilizando-se das três passagens, aproximando-se de Vitória pelas entradas do céu, da terra e do mar, “ três anúncios da cidade”, pelas suas“ três faces que vejo ao mesmo tempo que me encaram”, que me apresentam respostas, mas que me também me fazem outras perguntas.

Para cada caminho que percorro, em cada escolha, outra direções me indicam saídas, entradas e portais, mas “para onde devo seguir?”. Para cada percurso, diz Proust, como em Veneza, “não vejo senão isto que possa... fazer surgir do que julgávamos uma coisa de aspecto definido, as cem outras coisas que ela igualmente é, pois cada uma delas refere-se a uma perspectiva não menos legitima”.

São também três os limites, que em amplo triângulo geográfico me conduzem da metrópole a este dilema. Para estar dentro ou estar fora faz-se necessário invadir a sua delimitação, assumir um campo que guarda e recolhe os seus fantasmas e mistérios, assumir uma figura com seus vértices no mestre Álvaro, ou será Alvo, sempre coberto de nuvens, no outeiro e convento da Penha, e que completa no monte Moxuara, com seu perfil, em sombra guardando o acesso as verdes montanhas.

Mas ultrapassadas estas fronteiras, geográficas, somos lançados nos fragmentos, nas suas fraturas e descontinuidades artificiais, onde a história, seus feitos e fatos marcaram e demarcam sobre o solo, deixaram em riscos os prazeres e dores dos seus homens e mulheres. Ultrapassar estas passagens, que Peter indica, informa e mostra, suas portas do céu, do mar e da terra, é lançar-se no conflito, na desigualdade, na desordem, no divino e no mortal, no sagrado e no profano.

Quando os projetos inconclusos pareciam fazer uma realidade urbana permanente, os ventos do oriente trazem boas novas, a cidade se estranha, seus tempos e lugares parecem ser atropelados por um outro progresso, global, instantâneo, veloz, que submerge em pó as melancolias, rompe os incabamentos, apresentando transformações nunca vistos, estrangeiros nunca conhecidos, trabalhos imateriais nunca vividos.

Conseguiremos sermos nós e os outros, adicionar ao passado incompleto o futuro surpreendente, exercer o maravilhoso, na borda do vazio que torna seu próprio desvio, e assim tentar superpor aos restos e riscos, às sobras e ruínas, o desenho do impossível desejo?

Uma necessidade se aproxima, é urgente neste momento. Livrarmo-nos do peso que sucumbe, da herança histórica da exploração e do sofrimento, do isolamento e da exclusão provinciana que esmaga e submete. Esta bagagem, em camadas cristalizadas, nos incomoda, nos impõem limites e fronteiras. Cabe como no salto do tigre, fazer luzir sobre estas ruínas, resgatar os suores dos escravos, dos imigrantes, dos jovens, dos seus sonhos e visões. Desvelar as potências entranhadas em suas permanências, esgotadas em suas descrições acadêmicas, voar sobre o peso de suas construções e máquinas.

“ Os vazios revelam a cidade”, conclui Peter, desvelam seus inefáveis movimentos, seus ventos e brisas marinhas, misturando seus elementos originais aos que foram surgindo, feito pedra sobre pedra, deixando rastros e ruínas, riscando uma melange de astros e eventos em constelação que revelam ao olhar curioso as singularidades de seu sitio e de seus acontecimentos. Na fidelidade ao evento, “ fonte e fuga de si mesmo”, o território á artificio é “ migração, errância, imediata proximidade do longínquo”.

Revela-se, assim, o presépio que é a cidade. Seu ser, sua essência, seus montes, estrelas e cometas, seus magos e crentes, seus muitos curiosos, em torno de uma discreta manjedoura para abrigar o fato primordial do nascimento, com a fortuna traçada desde a concepção, desde o início dos tempos, desde a queda original, desde a perda e falta primeira.

Uma multidão irrompe em muitos, invade criativa este cenário datado, abandona a periferia e se aproxima junto, rompe estas determinações e limitações, soma, multiplica acertos e imperfeições, insatisfeita e feliz, torna-se real nesta “ coisa única que é um lugar” .

“Três entradas, três percursos “, onde a presença de um traz sempre a falta do outro forcluido, quando a escolha de uma nos convida à viagem, ao movimento, ao salto miraculoso que pode ser capaz de unir duas individualidade separadas.

Onde em seus vazios, eternos e fugidios, contínuos e transformados, onde em suas inúmeras revelações, uma outra cidade, um outro puzzle, um outro presépio, repleto de renovadas paisagens e passagens, se faz, se desvela, se reconfigura permanentemente.

Quem sabe assim...




Nenhum comentário:

Postar um comentário