sábado, 26 de fevereiro de 2011

Na matéria das pedras

Nas cidades, há uma convivência de duas séries, do presente e do passado, onde as suas coisas materiais habitam simultaneamente as duas. Eduardo Gruner, em uma leitura de Walter Benjamin, diz: La arquitectura es el arte que más intensas y dramáticamente conserva la memória arcaica de las necessidades primarias de la espécie”. Para ele, a arquitetura é o lugar onde se desnuda a contradição, onde se expõem os conflitos entre os desejos mais arcaicos da humanidade, o desejo de reconciliação entre a natureza e o mundo e a realidade da alienação capitalista, do fetichismo da mercadoria, “ da impossibilidade do cumprimento cabal desta promessa de reconciliação”. Na arquitetura e na cidade, em suas ruínas superpostas da história dos vencedores, não basta a presença de uma memória critica, mas é necessário um choque, “um curto circuito com a infelicidade do presente”, para a constituição da memória antecipada do futuro redimido. E” preciso uma memória que desperte a nostalgia do que nunca existiu e a projete em direção a uma redenção futura através de uma mimesis transubjetiva.
Em algum momento, os objetos arquitetonicos participaram da feitura de um momento, abrigaram eventos, práticas e procedimentos, prazeres e dores, imprimiram em seus muros valores e significados de uma época e de uma cultura. O que continua, o que resta permanente, tentando informar um sentido cósmico à natureza e à phisis, à cultura e arte, o que se resta do que se esvai e se abre/ se esconde ao compartilhamento, à tradução, à tradição, estão suportados em registros construídos, para serem desvelados, em sua aparência quotidiana, nas cidades, nas suas sombras e seus edifícios, aos seus futuros ocupantes.
Ali, impressos na matéria das pedras e na ordem da formas, retém-se, para a interpretação e potencialização, acumulados por décadas e séculos, uma massa de informação, onde a superposição das ações históricas foi as misturando, contíguas e superpostas, que ao primeiro olhar curioso de possuí-las e organizá-las se segue imediatamente uma sensação de desconforto e desanimo. Como se não fosse possível desvencilhar os fios e tramas que as compuseram, ou, que quando possível, apenas se apresentasse à contemplação e `a leitura um texto ininteligível que nenhum código, por mais complexo ou universal, fosse capaz de recuperar parte ou a totalidade de seus sentidos originais.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Alguns lugares e edifícios


Alguns lugares e edifícios urbanos, ainda que aparentemente conservados, no tempo e no espaço, em suas totalidades físicas originárias, aparecem como formas melancólicas na experiência quotidiana ou excepcional. Fixados em antigos locais, encobertos com superpostas ações, do tempo natural e da história humana, tais lugares vão se tornando, ao passar dos anos, cada vez mais herméticos, velados à leitura sensível ou racional, principalmente quando situados nos centros das grandes cidades, onde radicais e apressadas transformações alteram o ambiente urbano e apagam as histórias dos acontecimentos para os quais foram desejados e construídos. Mesmo quando um projeto de preservação lhes busca devolver a matéria e a cor primeira, lhes tenta reajustar a ordem primitiva que os conformou, somente uma pálida aura sobrevive nesta ineficaz recuperação, deixando vazar, em pequenos instantâneos, fugazes brilhos dos eventos anunciados, mal refletindo nos olhares e nas calçadas as vontades e projetos que lhes deram forma, significado e estrutura.

No acúmulo urbano destes objetos contíguos ou superpostos, lançados em partes e fragmentos à uma possível compreensão futura, em uns mais, em outros menos, escapam de seus resíduos construídos pequenas partes, que ao desfiar da razão e sentimento embaralham-se, a princípio, sem sentidos.

Em outros se oferece o tecido desfeito, que ao acompanhar, atento, o risco do bordado de um pequeno motivo podemos recuperar o desenho completo, tal como uma tapeçaria que ao refazer a cauda do leão, a imagem completa da floresta, da caça e dos caçadores irrompe, com seus úmidos verdes, suas trompas e cachorros, cheiros e gritos, inundando de movimento, ruído, ouro e vida a manhã aristocrata.

Na primeira coleta e apreciação destes indícios, os sentidos humanos inicialmente se extasiam, surpresos com tanta maravilha e encanto, surpreendidos com tantos mistérios e novidades, que nem percebem a aflição que neles emana e contagia; que nem ouvem as suas falas miúdas interrompidas, que nem escutam as suas mudas fantasias.

Se deles, destes edifícios e lugares melancólicos, nos aproximamos e escutamos atentamente estes sussuros, logo afastamo-nos com horror. Deles, de suas frestas, de seus intervalos e vazios, escorrem uma longa lista de dores e sofrimentos. Deles, de suas paralisias e sombras, murmúrios escapam desejos insatisfeitos, exalam desencantos, expiam torturas.

Ao se acercar refeitos, de volta, em um outro dia ou instante, a estes lugares, poderemos nos surpreender com este fogo agora morto, apagado. Nem um brilho, uma luz, um cheiro, um som, a vazar daquele objeto que no dia anterior parecia refletir e expor, mesmo incompleto, um texto aberto ao múltiplo entendimento e à admiração. Aí, agora, nada mais parece articular os escombros, estruturar os vãos e paredes ainda de pé, aí, nada revela, à rua, as pessoas e acontecimentos que, porventura, se movem em seus interiores, por entre os móveis realizam seus afazeres quotidianos e já não se recordam dos outros, indivíduos e eventos, que, anteriores, ergueram os tetos e paredes e riscaram as suas faces. Nem um eco, nem um espírito. Neste momento, são expulsos para ao longe, suas vozes e escrituras, como se um vento forte tivesse varrido para sempre de cada canto, de cada detalhe, de cada pedra, as memórias e lembranças do passado.

Nas cidades, na minha e em tantas outras, há uma convivência, uma simultaneidade destas duas séries, uma linha do presente e a outra, eco do longínquo, onde todo objeto comum, material e construído, aparenta habitar ao mesmo tempo as duas presenças, deixando aparecer alternadamente, a seu gosto, uma ou outra face ao nosso olhar de curiosidade.

São experiências distintas ou uma única, esta aparente dupla e oposta percepção e entendimento do mesmo edifício ou lugar?

Dependem unicamente de nós, de nossa especial atenção ou descuido a eles dirigido, alterado pelo momento ou emoção, ou esta ambigüidade é da essência da própria coisa, que só se deixa aparecer por instantes, expondo-se aleatoriamente ou pouco suficiente ao seu gosto instável e incerto interesse?


domingo, 6 de fevereiro de 2011

Infinito


Não temo obstáculo de cristal ou vidro,
ascendo aos mundos das estrelas e me aventuro no infinito,
deixando a meus pés o globo terrestre
Giordano Bruno


O professor e arquiteto Paulo Mendes da Rocha, em Vitória , olhava o mar, no mesmo lugar onde ele depois projetou o Cais das Artes. e apontando o horizonte sem fim ensolarado, me dizia : " Veja a África, ela está logo ali", girou o corpo em uma mudança de 180 graus, mirou as montanhas que encerram o sítio natural da cidade a oeste, e continuou : " E o oceano Pacifico, fica logo após estes montes. Vitória é o porto, o portal que liga a África `a América Latina ".
O que faz que quando olhamos o mundo, com os pés sobre o solo, muitos olhos identifiquem os limites, se regozijem e se submetam com a demarcação, as cercas e os muros, e ao mesmo tempo outros, nos mesmos lugares, identifiquem e percebam o ilimitado, o infinito, o que está além das fronteiras, o que ultrapassa o ponto de fuga próximo?
Vendo menos, será possível imaginar mais”, diz Rosseau.