domingo, 10 de abril de 2011

Transparente e leve


A brisa e o vento, transparentes e leves, revelam o embate de dois sentimentos, do que se mantém estático e do que se realiza, na oposição da gravidade e da graça.
A gravidade, através do peso e da massa, qualidades fundantes da matéria, tanto natural como construída, suporta e fixa as coisas permanentes da cidade e do mundo.
A graça, em sua leveza, é a experiência dos mistérios, da fragilidade das mudanças, do acesso a seus encantos e fantasmas, quando, diz Lampedusa, “ Sob o fermento de um sol intenso, todas as coisas pareciam perder o peso”.
Observar as formas e matérias urbanas, sob este duplo olhar de admiração, nos faz compreender a sua dureza e a sua fluidez, a sua continuidade e as suas mudanças, a sua identidade e suas diferenças, oposição  do ser e das suas interpretações, pois, diz Marilena Chauí “o que causa admiração e melancolia é a perpétua instabilidade das coisas, sua aparição e desaparição, o nascimento e a morte, a geração e a corrupção dos seres”.
No mundo sensível, dos elementos  que sustentam a continuidade na unidade do ser, são as mudanças que alimentam a curiosidade dos que querem entender o nascimento e morte dos homens e de suas criações, que querem viver as transformações  do artificio e da natureza, que querem descrever as paixões e os conflitos que atingem a sociedade e movimentam os acontecimentos históricos.
Que novidades, hoje, trazem e circulam estes ventos e brisas, instantâneos e etéreos?
Novas pestes globais que não obedecem a fronteiras, saltam os limites de países e avançam sobre cada corpo desprotegido, inoculando a solidão, o sofrimento e a melancolia?
Ou serão eles como brisas saudáveis que, originárias de outros mares, trazem as notícias recentes do coração do mundo, carregando as novas e expondo ao uso humano, expandidas e potenciais interações sensíveis?
Eugene Montale nos anuncia um vento tão especial que soa como lâminas, em sua poesia Corne Inglês.
O vento que esta tarde faz soar diligente
__ lembra um ruidoso sacudir de lâminas__
os instrumentos das arvores copadas e varre o
o horizonte de cobre
onde rajadas de luz alongam
como pandorgas no céu que ribomba ...
e o mar que escama por escama,
lívido, se matiza,
lança à terra uma tromba
de espiraladas espumas;
o vento que nasce e morre
na hora que lenta escurece
pudesse ele esta tarde fazer-te soar também
desafinado instrumento,
coração.
Será possível conviver, peso e leveza, corpo e espírito, comungando neste artifício monstruoso e belo, nestas cidades dos homens e deuses, que não mais cabem em suas muralhas ?
Ambigüidades ocupam estes ventos virtuais.
Ao se deslocarem, instantaneamente, não pressionam os corpos e a atmosfera, deslizando por fibras óticas, por ondas, em oscilações tão finas e complexas que só a máquina matemática consegue decifrar as suas intenções. Os muros e paredes não são obstáculos, não alteram as suas direções ou interferem nos seus caminhos e pouco podemos perceber as distorcoes que produzem e as portas que batem e se deslocam.
Mas também são como sopros homogêneos, repetindo a exaustão, sobre os corpos desprotegidos, a mesma e idêntica ordem, desqualificando o sensível e o tátil subsitutuidos pela interface sem profundidade, igualando vontades e apetites que se encerram no imediato instante de suas satisfações.
Poderão conviver e somar, pedras e bits, conectados em pontos de telas, ou se oporão, matéria e virtual, em mundos estanques e estrangeiros, com seus próprios desígnios e valores, tentando impor modelos únicos de vida e indiferença?
Em ambos os circuitos, às permanências acumuladas tentam se opor ao esquecimento e a perda.
È insuportável manter cada e todo registro das coisas, acumulando-se em camadas sobre as fachadas e pisos, grudando-se a cada instante o novo e outro e mais, se imprimindo sem fim nos muros e pedras engrossadas de tanta informação.
Bom são as coisas que viram pó. Levadas pelo tempo e pelas intempéries desgrudam-se de seus suportes e volteiam pelos ares, não se agrupando em novas ordens e formas, mas deixando-se levar desgarradas até que nem o brilho do sol consiga mais captar as suas desaparições no final da tarde, quando as sombras ombreiam as luzes contra as montanhas e os sobrados da velha cidade.