domingo, 19 de dezembro de 2010

Acaso e permanência do mundo



Que seja gentil a brisa

Calmas sejam as ondas

E que cada elemento

Responda favoravelmente

A nossos desejos.


Mozart



No mundo das coisas, comenta Hannah Arendt, “o artifício humano só se torna uma morada para os homens mortais, que sobreviverá ao movimento mutável de suas vidas e ações, na medida em que transcende a mera funcionalidade e utilidade das coisas produzidas para o seu consumo e para o seu uso” , assim, a cidade, a casa e a moradia dos homens, para além dos limites do imediato e da morte deve ultrapassar o fim exclusivo de reprodução da vida e da finitude humanas.

Para Heráclito, o homem habita na proximidade do extraordinário: o ordinário, que é o homem, convive na sua morada com o extraordinário, no lugar onde fica, no lugar que é seu, onde permanece, demora e onde tem a compreensão do tempo e da temporalidade, onde ele se coloca diante do acaso.

O acaso não é, portanto, o que deve ser evitado, mas, pelo contrário, o que deve ser positivado e afirmado. A irrupção do acaso, do acontecimento único e excepcional, dá o ritmo, dá a qualidade e o sentido ao mundo.

O acaso irrompe diretamente na estabilidade do mundo, como um incessante exercício da liberdade, como uma ruptura das continuidades, como um feito pleno de surpresas, “onde o que não poderia ser se afirma”.

É preciso, desta forma, aos homens, manter as condições, em sua morada, em sua cidade, do acesso à possibilidade do acaso, permitir a possibilidade da diferença, do improvável, do surpreendente, estar disponível diante do sublime e do maravilhoso.

Mas onde estão hoje, onde estarão visíveis hoje os sinais desta possibilidade?

A ambigüidade dos sinais é da essência do mundo contemporâneo, destes sinais que se deixam aparecer por instantes, expondo-se aleatoriamente um pouco, suficiente, ao seu gosto instável e interesse, precisando uma atenção especial à graça e ao risco de sua aparição.

Já para Gadamer, “A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se torna consciente de sua finitude,... a experiência é, pois, experiência da finitude humana” . Assim, neste processo de (re) conhecimento dos sinais do mundo, o homem tem a consciência da suas limitações, quando passa, a saber, pela prática, que não é senhor do tempo nem do futuro, quando percebe quais os seus limiares e suas fronteiras.

A experiência, desta forma, se constitui sempre como um diálogo, uma abertura para a fala de um outro, um contato com a temporalidade e imprevisibilidade dos outros, que ao serem compreendidas ou interpretadas, se expõem, ambígua e diversa, em matéria e concretude, a todos os homens, ao esforço de compartilhamento da finitude do mundo.

As cidades, local concentrado desta troca e compartilhamento, são os locais de uma experiência compulsória, distraída ou atenta, que coloca-nos em contato direto com a finitude da vida, com as perdas que ela nos impõe, pela sua própria presença, frente à continuidade e a presença de suas formas e do seu decaimento material no tempo, até a sua desaparição total ou a sua lenta transformação em ruínas.

Nas cidades, aprendemos a viver e conviver com as inúmeras falas, originárias de múltiplos pontos e posições, que nos atingem, de maneira desigual, disputando a nossa atenção e afeto, em uma balbúrdia que a cada instante são acrescentados novos significados, outros atores, inovadores roteiros e deslumbrantes efeitos.

Aprendemos, para sobrevivermos, em parte ilesos no meio de tantos apelos, a nos tornar-nos um pouco surdos, manter-nos um pouco cegos, ficando um pouco apáticos e insensíveis, distraídos, mas atentos aos signos que nos convidam ao diálogo contínuo e ao entendimento mútuo.

A questão original da cidade é definir e significar os limites e fronteiras materiais do corpo, individual e social, em uma linguagem não verbal, que mesmo diante da descoberta do infinito do universo continua a projetar lugares cerrados, que ao se tornarem particulares ou singulares, expõem esta relação limítrofe dos homens com o seu mundo terreno.

As cidades dos deuses e dos mortos, aberturas para o transcendente e o ilimitado, expõem mais explicitamente esta experiência da limitação humana, mantendo-se, quando preservadas, como marcos desta ambição à permanência espiritual e da indignação com a condição precária da vida humana.

Mas será que agora a arquitetura e as cidades estão emudecendo diante de uma “tecnologia virtual” que a propor a eternidade e a imortalidade, num congelamento do tempo e suspensão da morte, precisa necessariamente apagar no texto arquitetônico, a perda e a morte, o desgaste e a decadência?

Esta vontade estaria transferindo características da realidade imaterial para o mundo real, em um processo de virtualização do espaço humano, ao embate que destrói o singular e o plural?

Não há um equivalente às formas. Elas, organismos únicos, só podem ser trocadas por uma outra forma, também única, nunca por uma semelhante ou idêntica. “Neste aspecto, diz Braudillard, as formas - a espécie, ou a própria vida - não obedecem a nenhuma lei moral”. Sugere ele, que, “não faz sentido opor a imortalidade do semelhante, da repetição, do clone, do vírus a uma moralidade de valores e diferenças; é necessário opor à imortalidade a imoralidade superior das formas.”

Mas que seria esta a única potência da imoralidade das formas?

Seria a sua singularidade que não se subordina a nenhuma regra generalista, que transcende, na sua inovação, aos valores individuais ou mesmo coletivos, às regras do jogo, e assim, desta forma, não podem ser negociadas, trocadas por qualquer outra espécie artificial ou virtual?

Ou seria a imoralidade, um atributo exclusivo das formas produzidas pela espécie humana, inventadas pelo pensamento, nas obras que ultrapassam as exigências de reprodução da espécie, e imoralmente, insensatas, escapam das determinações da natureza e da história, de suas leis universais causalistas e finais?

Que superioridade estas formas possuem, resultado destas suas singularidades e imoralidades, que, resistem ao desejo da imortalidade e não se esquecem do decaimento da morte?

Como elas, orgânicas ou pétreas, se inscrevem, nascem e perecem na história, e não aceitam, submissas, o insensato desejo de sua perpétua manutenção, chocando-se, desgastando-se permanentemente, em resistência velada ou em movimentos descontrolados, em direção a sua extinção?

São estas coisas que impressas no mundo, em ciclos de vida diferentes, umas voláteis e efêmeras, desmanchando-se a qualquer sopro, outras mais duras e graves, que mal se podem perceber em suas faces os riscos do tempo, e neles reconhecer a passagem dos séculos, imorais, umas e outras, à lógica do saber e da contingência, que comparadas entre si, brisa e pedra, graça e gravidade, opostas, ambas, parecem insensíveis ao esclarecimento de seus mistérios, que as formaram e que as fazem desaparecer.

Serão elas, formas humanas, insensatas e imorais, as responsáveis pela fortuna da história, pelas pequenas e efêmeras felicidades, perdas e sofrimentos que desfrutamos na vida?

Estamos em outros tempos. O espaço construído não é mais o único ou privilegiado suporte para a experiência e a veiculação de valores morais, políticos e culturais. Novos meios, mais rápidos, instantâneos e virtuais expandem-se rapidamente e passaram a permitir que em qualquer lugar do globo possamos ter acesso as mais recentes informações, não exigindo a presença física e o peso de sua materialidade.

As cidades, onde se ergueram e destruíram monumentos e palácios, que colocavam na experiência e no contato físico as marcas dos poderes, projetos e ideologias, são superadas por trocas imateriais, através das telas planas dos monitores, sem profundidade ao olhar e sem maciez ao tato.

Os novos artefatos tecnológicos, da clonagem e da virtualidade, num cego sonho de sobrepujar a morte por meio da imortalidade, buscam atingir o mais terrível dos destinos, da indeterminação, da semelhança, da indiferenciação.

Ë preciso lutar contra esta possibilidade, pois diante da menor hesitação nesta luta, “uma luta pela divisão, pelo sexo, pela alteridade”, os seres vivos se tornarão repetidamente indivisíveis, idênticos e iguais uns aos outros.

Só os crentes ainda têm a fé que destruindo ou construindo símbolos e ídolos materiais iremos refazer e reunificar o mundo fragmentado e voltarmos a compreender e compartilhar a sua totalidade. O poder, o capital e o trabalho, a revolta e reação, estão cada vez mais se articulando em torno do intangível, do sem lugar, do etéreo, onde buscam dar visibilidade mundial e imediata aos eventos encenados.

O espaço construído abandona a sua máscara e revela a sua brutalidade. A brutalidade das necessidades de reprodução e consumo, a aspereza e a violência dos conflitos, o paroxismo do prazer hedonista, todos experimentados e consumidos em um presente perpétuo.

A cidade, local de contato e significação cultural, que exige tempo e divagamento para a sua apreciação e compreensão, se retrai, se reduz a uma situação de passagem, eixo da circulação acelerada dos corpos exaustos e dos objetos insensíveis.

Somente nas ocasiões das tragédias, quando dilacerados, os corpos despedaçados voltam às manchetes, aos jornais e aos vídeos, são expostos em suas verdadeiras essências, um monte de ossos e peles, nervos e sangue, são expostos em suas fraquezas e na sua condição mortal.

As cidades, a maior, mais antiga e mais complexa produção coletiva humana, ‘e o palco privilegiado deste embate onde os múltiplos projetos políticos e classistas buscaram estruturar e conformar a forma primeira a ser reconhecida, os olhares e os textos que amparam o poder e o controle social.

As formas que configuraram a cidades, suas particularidades locais, geográficas e étnicas, aparentemente permanentes em suas durezas e materialidades, se transformam com as múltiplas velocidades das mudanças, e a mesma rua ou edificação que em uma década ou século representava uma coisa, logo, de um outro ponto de vista ou colocada em outra moldura, passam a inverter os seus sentidos e ou significados, recuperam outras memórias e outras lembranças.

Quais as imagens ou rastros que se fixam, ou são produzidos, como fantasmas, marcas e indícios para a exploração ativa desta disputa pela rememoração hegemônica?

Serão elas naturais, estas imagens preservadas em sua originalidade a serem recuperadas em suas essências ou invenções culturais, ou artifícios erigidos para obstruir a memória, para pre´selecionar o escolhido e sepultar o esquecimento do indesejado?

“A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”, nos acorda Walter Benjamim, e articular historicamente o passado não significa refazê-lo, mas “significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento do perigo,... e em cada época, é preciso arrancar a tradição do conformismo”.

Onde se encontrarão, virtual e real, no encontro e no perigo da vida pública?

Sob o risco e o receio de perdermos as chances e reproduzirmos contínuos fracassos, uma imensa vontade nos possui e nos ocupa, uma intensa tensão nos movimenta e eletriza, em uma situação onde só o impulso da vida nos impõe romper os limites do controle e do futuro antecipado.


Kleber Frizzera

Maio 2009

2 comentários:

  1. Um verdadeiro Clássico da Arquitetura no sec.XXI. Parabéns !!!

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  2. Muito interessante o texto; eu tenho meditado muito sobre alguns dos mesmos conceitos aqui colocados. Embora meus pensamentos a esse respeito movam ao sabor do vento, grande parte do tempo eu acredito que estamos em transicao para um futuro onde a fluidez da imaginacao (e do acaso) sera a cidade onde todos moraremos. Embora concorde que o desejo de imortalidade e perfeicao (e a fuga em direcao a um ambiente virtual onde supostamente tenhamos um controle ilusorio sobre a situacao humana) seja uma tendencia preocupante, acredito que ha um agente independente sendo gestado na virtualidade, que potencialmente pode desbalancear a equacao: a mente coletiva. Embora composta de todos nos, a mente coletiva se desenvolve a passos largos e independentes dos nossos desejos. Nos podemos influencia-la em pequenas porcoes (como fazemos em nossos quintais nas nossas casas "reais"), mas ir contra sua corrente eh trabalho arduo. Acrescente-se a essa grande massa crescentes porcoes de inteligencia artificial que indexam, compilam (e recentemente, tiram conclusoes) sobre vastas quantidades de conhecimento humano e o que podemos ter em algumas decadas eh um grande metropole de pensamento tao independente das nossas vontades quanto as cidades atuais.

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