sábado, 8 de janeiro de 2011

Exílio



Falar do exílio da terra natal, pois podeis, está escrito em vossas paredes, em suas viagens, encontrar outras terras, diferentes, suntuosas ou maiores, mas nunca igual a sua, abençoada sobre o lume do fogo, inscrita nas cadernetas de avós, ao lado da listas, das contas de deveres e haveres, os nascimentos, os casamentos e as mortes que perpetuavam a história das famílias.
Desencantado o mundo, somente os fragmentos são percebidos, em alta velocidade, desajustados, incapazes que somos de colar os seus pedaços estilhaçados em um todo coerente que nos reinstale no mundo.
Exilado dos lugares e dos outros.
_” e ainda me dizeis que o exílio não é a morte ?, me recorda Romeu.
Aventureiros e viajantes sempre foram os homens, a se afastar da casa para afrontar os mares e céus em busca de longínquas terras, de seus tesouros e lugares protegidos por perigosos dragões e mágicas indestrutíveis. Os relatos de viagens, desde Ulisses, e das suas viagens de volta ao lar, se repetiram como epopéias em cada tempo quando, ao se lançarem em aventuras, os homens encontraram outros desejos, outras civilizações e povos, eldorados e terras prometidas. Mas em cada percurso, no meio de perigos e momentos de dúvida, era a lembrança do porto, da mulher, das campinas verdejantes, que mantinham a coragem, a determinação e a esperança no caminho, mesmo quando no movimento, na viagem, se faz a difícil e conflituosa relação com os estrangeiros. Outros.
A procura do paraíso terrestre foi um das motivações, em todos as horas, dos navegadores. O caminho de sua descoberta é sempre perigoso, exige enfrentar e superar uma imensidão de obstáculos que bloqueiam o acesso, expõem as múltiplas realidades do mal. O paraíso existirá em algum lugar. No Oriente, na Índia, na África, no reino do Preste João, ou além do oceano Atlântico, “mar de lodo e trevas”, o Éden aguarda o seu encontro, ser redescoberto.
Exilar-se, ser expulso da cidade, significa afastar-se dos eventos e elementos físicos que identificam com os mais próximos deuses, os afetos, as paisagens. Significa abandonar a identidade individual e coletiva, a estabilidade ancorada na história, nas rememorações das festas, dos sítios, do território natural e artificial, onde os monumentos ancoram a permanência, a duração, a continuidade.
Estar exilado é perder-se, significa ser privado da audição da língua materna, substituída pelos ruídos bárbaros, onde se faz esquecer a voz original, e “ Quando me esforço por falar-...- Muitas vezes faltam-me as palavras, esqueci-as”.

Nas cidades, estas questões foram ampliadas a uma escala concreta, a uma dimensão sensível desmesurada. Construída de superpostas ações e eventos, em pedra e cal, em tijolos e telhas, suor e trabalho, suas marcas materiais são lidas a contrapelo, experimentadas pelo corpo,- “uma cidade se conhece como os homens, pelo andar”-, a perambular pela suas ruas e percursos, caminhos que ensinam a recordar. Mesmo quando as festas se esgotaram e os rituais coletivos se transformaram em recitativos, em mecânicos gestos, repetições, os edifícios indicam, alvejam em suas janelas e portas, e as ruas apontam em suas esquinas, outras lembranças, ainda vivas. Músculos que se retesaram em sua construção, mãos que se desgastaram em sua confecção, corpos e mentes a vagar com os olhares apagados, gritando em seus últimos pedidos: “ falem de nossa história, recordem-se de nós, faça-nos viver, vocês que estão vivos ”, e mesmo atarefados com o futuro, ou porque, atentos com o futuro, os olhos arregalados com tamanho sofrimento, não podemos deixar que nossos mortos sejam abandonados, e falamos deles.
“Não somos impotentes - nós, pálidas pedras,
“Todo o nosso poder não se foi - nem a fama -
“Nem toda a mágica de nosso alto renome -
“Nem a maravilha que aqui nos rodeia -
“Nem todos os mistérios que em nós permanecem
“Nem todas memórias que pairam acima
“E estão girando em torno de nós qual vestuário
“Guarnecendo-nos num manto maior que a glória. “


Para Marcel Proust, “os seres humanos aparecem em certos locais que lhe servem de suporte e moldura, e que determinam a perspectiva segundo a qual nos é permitido vê-los”.
As pessoas se mostram em lugares definidos, e como as paisagens, são vistas quando qualificados por um dispositivo espacial, que demarca pontos e recortes especiais para a sua observação.
Longe destas regras, as pessoas escapam no quotidiano, escapolem por entre as faixas de transito, por entre o movimento das multidões, se transformam em invisíveis fantasmas, sem reflexos nos espelhos e nas estórias contadas. Optam, sem alternativas, em serem anônimos rostos, sem reconhecimento, sem documento, apenas passantes, sem deixar os seus registros. Lembranças.
Cabe deixá-las em paz.

Um comentário:

  1. Excepcional comentário. Paixão pela cidade não é pouca. Profundamente inspirado. Passante com registro...rsrs. Me deu vontade até de escrever um outro texto, valeu.Aquele abraço.

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