sábado, 19 de fevereiro de 2011

Alguns lugares e edifícios


Alguns lugares e edifícios urbanos, ainda que aparentemente conservados, no tempo e no espaço, em suas totalidades físicas originárias, aparecem como formas melancólicas na experiência quotidiana ou excepcional. Fixados em antigos locais, encobertos com superpostas ações, do tempo natural e da história humana, tais lugares vão se tornando, ao passar dos anos, cada vez mais herméticos, velados à leitura sensível ou racional, principalmente quando situados nos centros das grandes cidades, onde radicais e apressadas transformações alteram o ambiente urbano e apagam as histórias dos acontecimentos para os quais foram desejados e construídos. Mesmo quando um projeto de preservação lhes busca devolver a matéria e a cor primeira, lhes tenta reajustar a ordem primitiva que os conformou, somente uma pálida aura sobrevive nesta ineficaz recuperação, deixando vazar, em pequenos instantâneos, fugazes brilhos dos eventos anunciados, mal refletindo nos olhares e nas calçadas as vontades e projetos que lhes deram forma, significado e estrutura.

No acúmulo urbano destes objetos contíguos ou superpostos, lançados em partes e fragmentos à uma possível compreensão futura, em uns mais, em outros menos, escapam de seus resíduos construídos pequenas partes, que ao desfiar da razão e sentimento embaralham-se, a princípio, sem sentidos.

Em outros se oferece o tecido desfeito, que ao acompanhar, atento, o risco do bordado de um pequeno motivo podemos recuperar o desenho completo, tal como uma tapeçaria que ao refazer a cauda do leão, a imagem completa da floresta, da caça e dos caçadores irrompe, com seus úmidos verdes, suas trompas e cachorros, cheiros e gritos, inundando de movimento, ruído, ouro e vida a manhã aristocrata.

Na primeira coleta e apreciação destes indícios, os sentidos humanos inicialmente se extasiam, surpresos com tanta maravilha e encanto, surpreendidos com tantos mistérios e novidades, que nem percebem a aflição que neles emana e contagia; que nem ouvem as suas falas miúdas interrompidas, que nem escutam as suas mudas fantasias.

Se deles, destes edifícios e lugares melancólicos, nos aproximamos e escutamos atentamente estes sussuros, logo afastamo-nos com horror. Deles, de suas frestas, de seus intervalos e vazios, escorrem uma longa lista de dores e sofrimentos. Deles, de suas paralisias e sombras, murmúrios escapam desejos insatisfeitos, exalam desencantos, expiam torturas.

Ao se acercar refeitos, de volta, em um outro dia ou instante, a estes lugares, poderemos nos surpreender com este fogo agora morto, apagado. Nem um brilho, uma luz, um cheiro, um som, a vazar daquele objeto que no dia anterior parecia refletir e expor, mesmo incompleto, um texto aberto ao múltiplo entendimento e à admiração. Aí, agora, nada mais parece articular os escombros, estruturar os vãos e paredes ainda de pé, aí, nada revela, à rua, as pessoas e acontecimentos que, porventura, se movem em seus interiores, por entre os móveis realizam seus afazeres quotidianos e já não se recordam dos outros, indivíduos e eventos, que, anteriores, ergueram os tetos e paredes e riscaram as suas faces. Nem um eco, nem um espírito. Neste momento, são expulsos para ao longe, suas vozes e escrituras, como se um vento forte tivesse varrido para sempre de cada canto, de cada detalhe, de cada pedra, as memórias e lembranças do passado.

Nas cidades, na minha e em tantas outras, há uma convivência, uma simultaneidade destas duas séries, uma linha do presente e a outra, eco do longínquo, onde todo objeto comum, material e construído, aparenta habitar ao mesmo tempo as duas presenças, deixando aparecer alternadamente, a seu gosto, uma ou outra face ao nosso olhar de curiosidade.

São experiências distintas ou uma única, esta aparente dupla e oposta percepção e entendimento do mesmo edifício ou lugar?

Dependem unicamente de nós, de nossa especial atenção ou descuido a eles dirigido, alterado pelo momento ou emoção, ou esta ambigüidade é da essência da própria coisa, que só se deixa aparecer por instantes, expondo-se aleatoriamente ou pouco suficiente ao seu gosto instável e incerto interesse?


Um comentário:

  1. Kleber,
    Ótima reflexão do texto que, a partir dele, me fará lançar, mais acuradamente, um novo olhar sobre os lugares e edifícios urbanos e buscar entender o diálogo que estes tentam nos dizer.

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